Obviamente, Dissolva
Por IVAN NUNES
1. O regime político em que vivemos hoje tem sido por vezes caracterizado como "semi-presidencialismo de primeiro-ministro", para evidenciar a supremacia do governo e do seu líder, que se apresenta sempre a eleições como "candidato a primeiro-ministro" (ainda que formalmente o não seja). A Constituição dá obviamente latitude para várias soluções quando a chefia do governo fica intempestivamente desocupada. Mas nem tudo o que é constitucionalmente admissível é em todas as circunstâncias politicamente admissível. A Constituição fornece o enquadramento, não fornece a decisão. Quem quiser defender a ausência de eleições antecipadas desta vez, terá que o defender com argumentos políticos - não jurídicos.
2. Os mais desembaraçados comentadores políticos da direita assinalam que Durão "troca o Alverca pelo Manchester United" e que o país deve agradecer-lhe por isso. Aparentemente, não se deram conta de que aquilo a que chamam "o Alverca" é o próprio país. Historicamente, trata-se de uma escolha inédita: nunca ninguém abandonou o cargo político mais importante do seu país para presidir ao órgão não-eleito da União Europeia, a Comissão. O Financial Times (26.6.04) assinala a propósito que é a "relativa obscuridade" de Durão Barroso, "um dos líderes europeus menos conhecidos", o que lhe permite ter-se tornado o candidato do consenso. E acrescenta: "os Estados prestam homenagem retórica à ideia de que é necessária uma Comissão forte (...) mas na prática poucos toleram receber instruções de Bruxelas." A glória de que Portugal se cobre com isto é evidentemente imensa.
De um certo ponto de vista, creio que Durão Barroso está congenitamente talhado para o lugar: testa-de-ferro de uma burocracia não-eleita, procurando compromissos mas sendo de facto mandado por outros. A sua experiência no PSD e no governo comprova que Durão era a figura que vários sectores aceitavam por não estarem dispostos a submeter-se a Santana Lopes, e que Santana tolerou por saber que se tratava de um obstáculo facilmente contornável; não fosse o buraco do Marquês, e o projecto presidencial de Santana - um projecto de liderança carismática, não o de um presidente corta-fitas - continuaria prosseguindo alegremente o seu caminho. Mas hoje mesmo os comentadores discutem na televisão a saída do primeiro-ministro como se ela implicasse uma remodelação governamental, e não a formação de um governo novo - tanto no plano jurídico como no plano substantivo. Deve ser esta a marca da liderança de Durão Barroso: como primeiro-ministro, é remodelado.
Francamente, não me surpreende que a este líder acidental apetecesse, nos seus devaneios íntimos, fugir do partido, que não controla, e do país, que não melhora, para se tornar no presidente de uma burocracia internacional que não tem de ser eleita; já que tenha o descaramento de procurar efectivamente concretizar o devaneio é bastante espantoso. Mas diz-se agora que Barroso colocou ao Presidente da República, como condição para assumir o cargo europeu, a não-dissolução da actual Assembleia; e que o Presidente estaria disposto a aceitar a condição, a não convocar eleições, para não ter que assumir o ónus da eventual perda "para o país" do glorioso cargo europeu. Que o Presidente da República admitisse chantagens sobre aquilo que é o núcleo essencial dos seus poderes seria verdadeiramente inaudito.
Se Barroso quer ir, que vá; o país não deve nem pode ficar refém das suas "condições".
3. Na televisão, o director do Público chega a afirmar que, embora formalmente o Conselho Nacional do PSD tenha poder para designar um novo líder e candidato a primeiro-ministro, lhe parece que do ponto de vista da legitimidade política é necessário um congresso. Não umas eleições gerais - um congresso do PSD. A ideia de que o próximo governo tenha de esperar por um congresso do PSD, mas, em nome da "estabilidade" política, não possa depender de novas eleições gerais é verdadeiramente peregrina.
Hoje no Público.
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