Coisas de miúda

"E pra começar eu só vou gostar De quem gosta de mim" Caetano Veloso

sexta-feira, julho 02, 2004

Eleições Imediatas

Por CORREIA DE CAMPOS


Bem pode o primeiro-ministro demissionário alardear apelos ao PSD para respeitar a decisão presidencial. Insensível ao efeito devastador da instabilidade que criou, transfere para o Presidente a responsabilidade de manter um Parlamento politicamente esgotado, a cada dia que passa menos identificado com o sentir do povo. Os poucos jornalistas que parece ter arregimentado, nem a Constituição haviam inicialmente lido, induzindo o público na noção de que tudo se passaria como mera remodelação. Confesso que, por surpresa, quase me senti tentado pela solução. A hipótese de o novo primeiro-ministro sair do actual Governo, como havia sucedido após o desaparecimento de Sá Carneiro, parecia natural.

Quando surgiu o nome do virtual sucessor, de súbito fez-se-me luz. Pensei no imbróglio das eleições municipais, ainda com investigação pendente na Procuradoria-Geral; na luminosa solução do casino, em grandiosa arquitectura urbana, logo depois dissolvida em três ou quatro alternativas, cada uma mais inconsistente; nos prédios entaipados, sem demolição nem remodelação; nos embargos coercivos para lisboeta ver; no estacionamento caótico para não desagradar a eleitor automobilizado; no circo Rock in Rio, já contratado para nova ocasião pré-eleitoral; no túnel parado, nos incómodos já criados, na ligeireza e arrogância de não haver projecto prévio, nem estudo de impacte, nem orçamento realista, nem implicações de segurança estudadas.

Reconheço, certamente, o charme que lhe roja aos pés velhas glórias do teatro e que cativa intelectuais genialmente caprichosos, invejo a displicente preparação perante os "media", sem necessariamente fazer muito má figura. Admito que a pública imagem da pessoa divirta e anime, mas não basta para dirigir o país. A menos que o país directamente diga que o deseja. Ou que o homem assuma o partido e entregue a outrem o Governo.

A questão da confiança prevalece sobre a pretensa legitimidade formal. O dirigente partidário pode bem ser designado, mas confrontar-se-á com uma cada vez mais forte maioria de portugueses que nele não confia, não aceita o método e explicitamente declara preferir eleições antecipadas. Um coro de protestos surgiu do bloco central mediático. Líderes de opinião, insuspeitos de simpatia socialista, que energicamente demoliram Guterres há dois anos, não poupam reservas e recusas. Senadores da República, antigos dirigentes da direita, do alto da sua respeitabilidade de décadas de serviço público, asseveram-nos que a consulta popular directa será a melhor solução. Membros do cessante Governo, responsáveis pelo que de melhor e pior nele se fez e até aqui venerados na coligação, não podiam ser mais vocais na rejeição. Respeitados dirigentes do seu próprio partido, embargados em recusa liminar, transferem para um congresso interno a designação de um responsável.

Aceitaremos como continuação do anterior, um Governo que nada terá a ver com ele? Trocaremos a clarificação imediata pelo formalmente tolerável, mas substancialmente arriscado? Aceitaremos o benefício de uma dúvida que certezas anteriores confirmam, criando a necessidade de dispendiosa cirurgia radical, em futuro incerto, mas fatalmente próximo?

A questão não é formal, é política. Escolhemos em devido tempo quem confiadamente pode garantir estabilidade e segurança. É nas horas difíceis que se mede a têmpera dos homens, conceito que inclui o equilíbrio e a coragem, a moderação e o arrojo, a bonomia e a frieza.

Durão Barroso, já partido para outra, bem pode insinuar acordos inexistentes. Mesmo que tenha tomado a nuvem por Juno, a situação muda a cada dia.

Felizmente, seis séculos nos separam do grito "acudam ao paço, que matam o mestre". O mestre venceu, reinou, casou com uma princesa de Inglaterra e dela houve altos infantes. Os infantes desta hora serão as oportunidades ganhas pela energia refrescante de eleições imediatas.

Hoje no Público.